O Restaurante Tavares é o mais antigo em Portugal, e um dos mais prestigiados. Em 2008 apostou na renovação com a contratação do jovem chefe José Avillez. Estamos bem entregues, nas mãos de um talentoso chefe que mostra rigor, criatividade e visão, sem descurar a história, a geografia e a psicologia.
Após 224 anos de história nem sempre contada, chegamos a 2008 com o Tavares, Rico de fachada, mas já só Tavares, a constituir-se numa aposta numa cozinha portuguesa voltada para o futuro. Se as últimas décadas foram alternando entre o declínio e a estagnação, os últimos anos trepidaram de novidade. Primeiro com Joaquim Figueiredo, depois Hermâni Machado, Luís Correia, e finalmente Philippe Peudenier à frente dos fogões. Entretanto as mudanças de proprietários, até chegar ao Grupo J. R. Costa, de onde tudo recomeça.
Deve ser difícil, arrastar consigo 2 séculos de lastro. Em 2008, os proprietários do Tavares decidiram chamar José Avillez para chefiar a cozinha. Bruá garantido na cena lisboeta e até nacional. Por todas as razões que se sabem, mas em particular “é muito novo.” Bom, se calhar é muito novo num restaurante muito velho. A solução foi tornar novo o velho, rejuvenescer o Tavares, recomeçar.
Neste processo de renovação, Avillez procurou respeitar os sítios e a história. Isto é, o Tavares não é um sítio qualquer, e já tinha sofrido instabilidade suficiente. Assim, Avillez procurou entender e comunicar com os seus clientes que no restaurante Tavares se faz uma cozinha portuguesa, com raízes bem fundas na tradição, mas onde aqui e acolá se vislumbra o futuro. Isso permite-lhe manter na carta pratos super-tradicionais como o bitoque ou o bacalhau à Brás, para ir ao encontro dos saudosistas, mas onde o grande rigor se complementa com apontamentos onde as técnicas mais modernas conseguem preencher lacunas, inovar, e interessar o cliente por ir um pouco mais longe. Dou um exemplo: o ovo do bitoque é uma gema cozinhada a baixa temperatura que irremediavelmente criará no comensal tradicionalista dúvidas, interrogações e — espera-se — desejos. Uma espécie de isco para atrair e desafiar. Mas não mereceria a alheira uma gema parecida em vez do banal ovo estrelado? É nesta ligação cozinha tradicional portuguesa com as inovadoras e (francamente) sedutoras propostas modernas que está um dos poucos defeitos do Tavares. É como ter dois restaurantes num…
Quem morder o isco e voltar pondo-se na mão do chefe, num extenso menu de degustação, sairá de lá encantado. Avillez entende como ninguém os ingredientes da nova cozinha, fruto da sua experiência, inteligência e introspecção. As técnicas servem para contribuir para o resultado final, nunca são usadas para exibição gratuita. A qualidade e rigor colocado em cada detalhe são usados para formar uma refeição (refeição!) onde se come (come!) e se desfruta de uma garantida experiência sensorial única, de puro prazer, evidenciando um cozinheiro de talento, técnica, e rara sensibilidade. Se o José Avillez conseguir encontrar no Tavares a estabilidade que tanto falta na restauração portuguesa, o seu contributo para a renovação da cozinha portuguesa vai constituir um marco indelével. Primeiro vai ser preciso encontrar os clientes, formá-los, como o próprio Avillez me disse. A comida tradicional ajuda a começar, mas ainda vejo muitos almoços com poucas mesas, o que é explicado por uma visão elitista que o Tavares não merece. Os menus da hora de almoço são muito acessíveis e competitivos. Este é um projecto que merece ser apoiado desde já. Lisboa merece ter um restaurante assim (há poucos restaurantes de grande nível não apoiados em hotéis) e o público de Lisboa deve compreendê-lo e acarinhá-lo.
Da tradição…
Vamos ao tacho. Fiz várias visitas, que relatarei como se fossem duas. Uma de almoço, outra de jantar. Ao almoço centrei-me nos pratos tradicionais. Depois de uma emulação modernizada do couvert português (azeitona em tempura, queijo fresco com presunto virtual e crumble de broa), avançámos para um entretém de boca: cabeça de xára servida morna, num cubo grosso, com rebentos e cebola roxa. Apresentação exemplar dos pratos, num começo muito tradicional, mas com a modernidade e ligeira provocação sempre a espreitar, a tal ideia de isco para ir mais longe. Pois bem, não fui. Amêijoas à Bulhão Pato, bitoque e alheira. As amêijoas são um tratado, com o delicado sabor a mar com uma textura firme, a prender o dente a dever-se apenas a “menos tempo de cozedura.” Tudo o mais é só delicadeza na confecção: o alho branqueado para ser menos agressivo, coentros frescos em tiras finas e aromáticas, caldo saboroso, longo. De manual. Os legumes, frutos, flores e etc. são um dos grandes pratos do menu, vocacionado para levantar sobrancelhas. Simplicidade dos produtos frescos, complexidade da multiplicidade de sabores, texturas, cores, aromas, subtileza na composição, que um prato destes facilmente descambaria num exagero qualquer. Não, não há exagero, há beleza, harmonia, leveza, rigor em todos os detalhes, e aqui são muitos. Bitoque: carne muito saborosa e bem confeccionada, no ponto, acompanhada com batatas fritas perfeitas, coração de alface grelhado, gema cozinhada a baixa temperatura, numa textura cremosa e firme. Sim é um bitoque, mas tem tudo no seu sítio certo. Alheira com grelos e ovo estrelado. Proveniência da alheira a garantir um sabor perfeito. Grelos bem cozidos, salteados rapidamente em azeite para preservar a textura carnuda, apenas o ovo estrelado poderia ir mais longe, penso. Sobremesa: sericaia sobre uma cama de ameixas de Elvas desfeitas e gelado de poejo. Mais uma vez, tudo bem feito. Com o café, a tentação ainda permite uns afectos do chefe: um cone de coco ralado seco e mordente, uma trufa de chocolate (Araguani) com vinho do Porto, um queque de manga estaladiço e amanteigado com geleia fresca de morango.
…à modernidade…
Jantar. Escolho o menu longo, “surpresa.” Após o couvert habitual, desfilam os pratos. A “transparência marina” é uma escotilha de submarino, onde se pode vislumbrar o fundo do mar. Explicou-me o chefe: como uma fuga para a liberdade, o mundo aberto por oposição à clausura. Eis o prato: berbigão, mexilhão, ostra, amêijoa, lingueirão, crumble de broa (a areia), algas, percebes, espuma de limão, pão com tinta de choco (pedras), vieira marinada, salicórnia, tudo coberto por uma película gelatinosa à base de Água das Pedras. Visualmente impressionante, na textura, no aroma, no sabor de cada componente, a perfeição e o rigor. Um prato de tcham, um desafio ao comensal, que tem dificuldade em abraçar a complexidade e o esfusiante prazer deste prato. Este é um daqueles pratos que definem o chefe, uma brincadeira, mas nada leviana: nada está ali por acaso. Ligámos com alvarinho, uma sugestão do esclarecido chefe de sala e escanção, Arlindo Madeira. A seguir, amêijoas esferificadas: inspiradas no Bulhão Pato, cada amêijoa vem envolvida numa esferificação do molho das próprias amêijoas, recriando o efeito de casca. Leva ainda uma redução do próprio caldo das amêijoas e um pouco de maçã verde a dar alegria. Sabores intensos e puros. O camarão da costa com leite de pinhão (verde) e salicórnia mais uma vez impõe-se pela grande qualidade dos produtos e rigor da confecção. Vem uma cabeça de xára tépida, maionese de óleo de lagostim, merengue de lima, rebentos de coentros e lagostim ligeiramente salteado, uma ligação terra-mar. Mudamos para um velho branco do Douro. O sabor intenso do vinho acompanha este prato de múltiplos contrastes e ligações desafiantes.
Mais peixes
Sopa de cação, gelatina de uva tinta, com o peixe cozinhado a baixa temperatura para deixar vibrar a textura delicada, sedosa e filamentosa. O robalo cozido a 54ºC brinca com o perigo, que é a barreira inferior da temperatura de cozedura. Acompanha com água de bivalves, salicórnia, bivalves e broa crocante. Segundo Avillez, é um mergulho no mar. A verdade é que enquanto ele descrevia o prato o aroma recendia a convidar-nos a entrar nele. O fim de boca deste prato era intenso e longo, num encanto de mar fresco e puro. Depois mais um grande prato: salmonete de Setúbal, espinafres do Algarve, merengue de limão, carvão vegetal e molho dos fígados. Um pic-nic de grelhados, onde o salmonete de cozedura perfeita se deixa lascar em pedaços firmes e saborosos, o fumado de carvão presente no azeite com sal e pão torrado, escurecidos por tinta de choco, os espinafres gordos, firmes e carnudos. Quando já não apetece mais nada, o pombo em duas cozeduras (coxa a baixa temperatura e peito salteado) ainda nos consegue tentar. O molho com canela, óleo de avelã, o puré de maçã e as acelgas salteadas acompanham um ferrero rocher: reconstrução de um clássico bombom com foie gras, trufas e avelã, embrulhado em folha de ouro. Impressionante, bonito, ligando na perfeição com o pombo, cuja carne delicada é enfatizada pelas técnicas perfeitas usadas para o cozinhar. Desta vez acompanhado por um tinto robusto de St. Estèphe, decantado 3 horas antes.
Bom gosto e subtileza
Respiramos fundo, que ainda falta a sobremesa: para entrada, queijo fresco de cabra com uma risca de gomásio de pinhões a terminar em mangericão; Nisa com crumble de broa que termina numa bagulhada de pinhões; Ilha com a risca de redução de vinho da madeira e ananás confitado; Serra com risca de alecrim seco em pó e compota de azeitona doce. Tudo servido numa telha de lousa, com as riscas longas a ligar o queijo à respectiva compota, num serviço bem doseado para não pesar. Ainda outra pré-sobremesa, sorvete de framboesa e wasabi, talha dourada (crocante de arroz com pó de ouro) e petazetas. Temperatextura perfeitas, com o wasabi a ligar bem com a intensidade da framboesa, as petazetas a dar textura rugosa ao prato.
Em conversa com o chefe Avillez tentei perceber o seu caminho, a sua procura. Rigor, dedicação, muito trabalho, vontade de arriscar, tanto nos negócios como nos tachos, muita determinação. Estes são os ingredientes de base. Depois, talento, génio, criatividade, vocação, rasgo, sensibilidade para incorporar diferentes influências, uma certa frivolidade artística que lhe deixa ir experimentar muito longe dos sítios do costume, e ainda por cima mantendo-se dentro os limites da delicadeza, bom gosto, subtileza. Esta é a imagem do presente. Mas os seus 29 anos e a segurança que já tem, fazem-me pensar que no futuro teremos uma sua cozinha mais personalizada, ainda mais arriscada, mais focada, mais genial.
Lista de vinhos
A lista de vinhos é extensa, mas não muito estruturada. Se em algumas regiões está bem equipada com o melhor que se faz em Portugal, noutras peca por algo estática e limitada. Há muitos vinhos estrangeiros, principalmente de Bordéus, mas por vezes a um preços absurdos (950€ um Ch. Mouton de 1998?!, 70€ por um Ch. Pierbone 2000?!?!?!). Além disso, a carta é algo desequilibrada. Vejamos: brancos são 8 Vinhos Verdes, 17 do Douro, 9 do Dão, 5 da Bairrada e Beiras, 6 do Ribatejo e Estremadura, 2 de Bucelas, 4 das Terras do Sado, 12 do Alentejo. Rosés são 3 do Douro, 1 do Dão, 2 do Ribatejo e Estremadura, 1 do Alentejo. Tintos são 109 do Douro, 22 do Dão, 16 da Bairrada e Beiras, 18 do Ribatejo e Estremadura, 16 das Terras do Sado, 68 do Alentejo. Depois, há 19 brancos franceses, 57 tintos franceses (49 de Bordéus), 7 champanhes, algumas dezenas de vinhos de outras nacionalidades e ainda 44 Porto. Há ainda uma pequena lista de vinhos a copo, com 3 brancos, 3 tintos, 1 rosé e 3 champanhes. Apesar de alguns preços muito inflacionados, há bastantes vinhos abaixo de 30€. Mas para esta comida de excelência, o preço de beber um vinho de excelência será sempre castigador.
Fonte: Revista de Vinhos; Texto Luís Antunes; Fotos Rotas & Sabores XL
2 Comentários
Aradhana
16 anos atrásNeste restaurante fez a minha Família a despedida aos meus Pais quando partiram para África em comissão de serviço… e sempre que voltávamos era lá que a Família se reunia.
Gratas recordações…
Bj
😉
maria
14 anos atrásboa tarde por acaso estou interessada em saber como funcionou o Tavares Rico durante as diferentes fases. Se tem essas memórias gostava de poder conversar consigo.
deixo o meu e-mail e fico à espera do seu contacto.
Desde já, obrigado