Fonte: Conferência realizada no Simpósio do 2º. Conclave da Confraria dos Degustadores do Vinho do Dão. De LUÍS CALHEIROS.
É muito feliz a associação do Vinho à Arte, porque é, desde tempos imemoriais, feita uma relação directa entre o êxtase delirante a que conduz a embriaguez do vinho, e a alucinação inspirada, como que um delírio lúcido, que provoca e potencía a criação artística.
É com a civilização clássica, que no seio do chamado milagre grego, a par com o espanto primordial da filosofia, se assiste à transformação das festas em honra a Diónysus (o deus grego do vinho e da vinha) no drama arcaico, na forma convencional do diálogo entre o coro e o actor recitativo dos ditirambos, que está na base da tragédia grega.
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Esse expoente da expressão artística que é o teatro antigo grego, conjunto de artes cénicas, dramáticas (a que pertence também a comédia) está na infância de toda a arte ocidental, que nasceu no período arcaico, pré-clássico, da cultura grega, e tem origem certa nas cerimónias propiciadoras dos cultos do Deus do Vinho, sob a forma de representações mímicas e de expressões tipificadas, pathéticas. É na Grécia, no período arcaico, que nascem estas manifestações culturais exuberantes, onde o culto a Diónysus (depois latinizado no Bachus romano) propiciou espectáculos meio sacros / meio profanos, em que apenas um coro e um actor, usando a máscara identificadora do Deus do Vino, com os seus atributos – a coroa de pâmpanos e cachos de uvas – recitavam o ditirambo, discurso poético laudatório, edificante, perante a divindade. A tragédia, que Nietzsche, o filósofo do dionisíaco, exalta na sua feição arcaica, pré-helénica, é um género dramático, em prosa e em verso, caracterizado pela presença de dois elementos: o pathos, entendido como sofrimento que leva ao conhecimento, de maneira iniciática; e o “mito”, componente histórico, lendário ou fantástico. A sua origem e evolução aparecem indissoluvelmente ligados ao mundo helénico, como experiência cultural complexa, em que convergem factores religiosos, políticos, morais, sociais e culturais diversos.

Aristóteles, o célebre filósofo imanentista da Escola de Atenas, relaciona a origem da tragédia com o “ditirambo”, verso e canto coral em honra a Diónysus, o Deus da vinha e do vinho. Diz aquele filósofo, na sua obra “Poética”, que se deve a Téspis, a origem da tragédia na Ática. Mais diz que, quando Diónysus ensinou a Icário, na Ática, o cultivo da vinha, um bode comeu as vides; para castigo o animal foi sacrificado e sobre a pele, cheia de vento, os vinhateiros dançaram e cantaram enebriados; a maior parte caía de tontura ébria; mas os vencedores obtinham como prémio a carne do animal e a pele cheia de vinho.
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O coral que acompanhava a dança festejava o vinho novo ou a vindima, e o bode era o prémio. Ora Téspis, o poeta, pai das artes cénicas arcaicas, era natural de Icário, na Ática, e os de Icário foram os primeiros que dançaram em torno do bode. A tragédia e a comédia, como também confirma Ateneu, teriam sido inventadas em Icário, na Ática, por ocasião da vindima e no delírio da embriaguez dos vinhateiros. Téspis, quando venceu a dança do ano de 534 AC, obteve como prémio o Bode.
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Temos dos antigos que a tragédia é mesmo assim designada pelo dito prémio – o bode (Trágos em grego) ou pelo vinho novo (Trúx).
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Os coros trágicos eram compostos por Sátiros, que os espectadores chamavam de “bodes”, ou porque eram peludos de corpo, e de “pés caprinos” e de pequenos cornos na cabeça, ou pelo ímpeto afrodisíaco desbragado, ou enfim, porque os Coreutas arranjavam os cabelos de modo a imitarem a figura de bodes (Trágoi).
Eis o satírico, de Sátyros / Trágos, patente na etimologia da tragédia, que passou primordialmente, no período mais arcaico, por uma fase satírica. Em resumo, Aristóteles afirma com clareza o culto de Dióniso, o culto do Deus do Vinho e da Vinha, da embriaguez e dos instintos, da rebeldia dos sentidos, na origem das primeiras manifestações artísticas da antiguidade clássica.
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Nietzsche vai mais longe ao apelar ao espírito dionisíaco como fonte certa da pujança de toda a forma artística. Sem esse espírito peculiar a força anímica patente na arte estiola e decai. Na sua obra “A Origem da Tragédia” debate-se com a decadência da exuberante força cultural dos gregos arcaicos, acontecida no período helénico, pela nefasta acção censora da razão, anulando implacávelmente a pujante força anímica, instintiva, expontânea, pré-individual, pré-lógica, mas matriz de toda a criação artística viva, plena e inovadora, que encontramos nos gregos primevos – dionisíacos.